Alguns Pensamentos...

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quarta-feira, outubro 25, 2006

Ser pessoa excede o ser cidadão

A semana passada gerou-se, entre um grupo de amigos com uma formação variada, uma discussão em torno da tese do pedagogo da primeira metade do século XX, Kerschensteriner, segundo a qual o fim geral da educação é formar cidadãos úteis.
A minha posição relativamente a esta tese não ficou esclarecida na altura e aproveito para o fazer agora num post dirigido especialmente "à malta" que participou nesse curto debate, aliás, bastante interessante. Julgo que terá transparecido, para alguns espíritos menos atentos, que eu me limitei a afirmar como absurda a tese, arriscando-me a ser considerado como alguém com a «mania da contradição». «Então não é essa uma finalidade que define a própria educação? Não é totalmente justificável pôr o acento na formação para a cidadania?» - perguntaram alguns. Para a tranquilidade de todos presentes naquela conversa, sublinho sem reservas que a formação para a cidadania é um encargo humano irrecusável e muito importante, não sendo um absurdo ou um desperdício de energias, antes pelo contrário, reflectirmos sobre o seu significado, sobre os seus requisitos e sobre as suas implicações. Foi isto, aliás, o que me propus fazer naquele curto espaço de tempo, considerando, no entanto, que o não podia fazer adequadamente sem ter como pano de fundo o seguinte: a realização de cada pessoa passa de maneira forçosa pelo seu desempenho, nos múltiplos contextos da vida comunitária, como cidadão, mas é inaceitável que cada um seja reduzido à sua condição, não obstante muitíssimo nobre, de cidadão. Noutras e em menor número de palavras: ser cidadão é indispensável ao ser pessoa, contudo a pessoa que se é, sob a forma de "ir sendo", excede sempre o que ela pode e deve traduzir em termos de cidadania.
É a maior extensão do conceito de pessoa relativamente à do conceito de cidadão o que torna absurdo definir o todo da educação como formação para a cidadania. No entanto, porque não me parece possível a nossa construção pessoal íntegra sem exercitar e dilatar as capacidades para a intervenção na vida pública e mesmo política, a educação tem como uma das suas finalidades - a meu ver não é a sua finalidade última, a que a verdadeiramente a caracteriza, antes uma finalidade que se cumpre em práticas instrumentais - a formação para a cidadania.
Não admira, portanto, que frequentemente apareçam confundidos o enunciado dos propósitos do desenvolvimento pessoal e o enunciado dos propósitos do desenvolvimento social (ou cívico). Lida num sentido restrito, a confusão parece-me legítima. De facto, somos como cidadãos o que somos como pessoas. Por isso, e seguindo o mesmo sentido, poderíamos até falar apenas na formação da pessoa.
Ser pessoa implica ser o indivíduo à parte que cada um é, e a ilegitimidade da confusão só se pode encontrar se, como o fito exclusivo na cidadania, se esmagar a individualidade de que somos socialmente chamados a dar conta dos nossos actos. Estes adoptam, na sua quase totalidade, uma faceta pública, uma realização que, pelo menos em alguns dos seus efeitos, se exterioriza, mas não podem prescindir na sua origem de um centro pessoal intransferível e, nesta acepção, profundamente individual.
Objectar-me-ão que estamos a cair num círculo, dado que nem sequer o indivíduo é por completo inato, indo ao longo da existência integrando lições retiradas do convívio, de raio variado, sem o qual o ser da nossa espécie não se pode tornar propriamente humano. Isto é correcto, todavia não configura uma objecção, pois não defendo (jamais) que o nosso ser individual seja separável do nosso ser social; o que digo, ao invés, é que um e o outro são faces da mesma moeda, do nosso ser pessoal.
Em suma, mais do que cidadãos, somos pessoas e que, enquanto pessoas, traduzimos socialmente o indivíduo que somos e transformamos em sociedade certas idiossincrasias particularistas.
Porém, esta minha posição, em que julgo que as principais linhas de força ficaram esclarecidas, sobre o que somos e o que queremos com a nossa formação exigem uma certa «ginástica», que nos permita mover, entre afirmações n vezes repetidas e tidas como indiscutíveis com um espírito crítico, o que se espera, afinal, de qualquer verdadeiro cidadão.

12 Comments:

Anonymous Anónimo said...

E depois de ler o post recordo-me de Piaget…a admissão de dois aspectos correlativos ao Homem: autonomia e reciprocidade, em oposição ao que ainda não atingiu o estado de personalidade, assumindo como características principais a não observância de regras e centrar sobre si relações que o prendem a um ambiente físico e social.
Cidadania…educação para…oscilar entre estes dois conceitos…aí sim teremos uma sociedade que saiba valorizar e quiçá explicar o que é isto de ser cidadão nesta aldeia global!

11:44  
Anonymous Anónimo said...

Esclarecidíssimo, o que não quer dizer que concorde.
Abc

12:16  
Anonymous Anónimo said...

Já tinha percebido o que querias dizer na altura mas palavras leva-as o vento e fizeste mt bem em escrever. Após a tua ausência daquele café, a conversa amenizou um bocadinho e acho que basicamente se concluiu que ser cidadão é uma dimensão do ser pessoa, ideia da qual partilho.

14:09  
Anonymous Anónimo said...

Por acaso tinha dúvidas acerca de como te situavas nesta problemática mas elas dissiparam-se com este texto. Acho que o ser pessoa excede sempre o ser cidadão e nunca se podem equivaler, como julgo que a Rute sugeriu (e já sugeria no café). jinhos**

14:21  
Anonymous Anónimo said...

A minha posição ficou clara na altura e n vale a pena repeti-la. Acho que o post não esgota a temática de que falávamos mas sintetiza algumas das ideias com as quais me identifico. 1 abraço

14:26  
Anonymous Anónimo said...

Se soubesse que falar de educação, de cidadania e do Kerschensteriner dava nesta (proveitosa) discussão, não tinha levantado o assunto. ;) Para a próxima falamos de algo mais trivial, como o benfica ou qq coisa parecida. Abc

14:38  
Blogger David Soares said...

maria morais,

Parece-me que a óptica de Piaget tem pontos de contacto com a de Kerschensteriner fundamentalmente porque pretendem ambas construir o conhecimento não resultante de um simples registo de observações ou sem uma estruturação devida à actividade do sujeito. A autonomia e a personalidade tornam-se importantes na medida em que estão inseridas numa dinâmica construtivista, com a elaboração contínua de operações e estruturas novas.

20:56  
Blogger David Soares said...

filipe,

Nem eu esperva outra coisa de um verdadeiro cidadão!

Um abraço

20:57  
Blogger David Soares said...

rute f.,

Tive pena de não poder ter ficado um pouco mais de tempo para discutir essa conclusão...

21:00  
Blogger David Soares said...

inês,

Ainda bem que compreendeste a minha posição face a este assunto. Temos de combinar novas tertúlias!

21:02  
Blogger David Soares said...

luís,

Este post está longe de esgotar a temática de um assunto que me parece pertinente. Apenas pretendeu ser o prolongamento de uma conversa e esclarecer alguns pontos que me pareciam fundamentais.

21:07  
Blogger David Soares said...

hugo s.,

Ainda bem que levantaste esta questão e deixaste de fora as tuas preferências clubísticas porque vivemos um período em que, de toda a parte, surgem interrogações acerca das orientações a dar à educação.

21:09  

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